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Nesta
semana, um dos programas da Globo que homenagearam o carro-chefe de audiência
da casa exibiu uma reportagem sobre as
avenidas chamadas Brasil. Dentre as centenas, ou milhares, de logradouros
espalhados pelo país inteiro, foram selecionados quatro, todos interessantíssimos. No
extremo sul do país, no Arroio Chuí, a avenida escolhida não fica propriamente
no país, é preciso atravessar a fronteira com o Uruguai para conhecê-la, logo
ali do outro lado. É uma avenida simples, cujo toque pitoresco é mesmo sua
localização.
Já a avenida
Brasil que fica no outro extremo, numa pequeníssima cidade a 60 km de Manaus,
tem singelos 200 metros e quase nenhum movimento. Poucas pessoas na rua, nenhum
carro nas imagens – um horizonte de paz e tranquilidade. A equipe de reportagem
acompanhou o trabalho de um carteiro que, evidentemente, conhece cada morador
pelo nome e, em menos de cinco minutos, chega ao final daquele CEP. Um bom
exemplo dos 90 por cento das cidades que formam o Brasil.
Em São Paulo,
capital, a grandeza da sua avenida Brasil está nas margens. Com dois
quilômetros de extensão, a via é ocupada por casarões de gente muito abastada,
que se dividem entre moradores históricos (seguidas gerações de famílias que
criaram ali seus filhos bem nascidos), que preservam o aspecto tradicional, e
construções ultramodernas – verdadeiras obras de arte da arquitetura e do design – ex-residências quatrocentonas
que se renderam ao business. Na
avenida, propriamente, muito trânsito. E pouca gente nas calçadas. A avenida é
lugar de passagem, a vida pulsa intramuros.
A quarta
avenida selecionada não poderia ser outra, a boa e velha avenida Brasil do Rio
de Janeiro, maior via do país, com 58 quilômetros de extensão. A artéria é
decisiva para o humor da cidade. Quando tem encrenca ali, provavelmente haverá outras em muitos lugares. Desde o gasômetro, lugar de sanha urbana
febril, até onde termina, no número 58.000, com idas e vindas de roceiros e
charretes, de tudo há. Na reportagem, o que se via era gente trabalhando. Trabalhando,
inclusive entre os carros, fazendo do engarrafamento um escritório a céu aberto
para vendedores ambulantes que se misturam aos passantes tentando oferecer algo
que torne menos penoso a sua travessia; uma água, um pacote de biscoito Globo (–
sal ou doce, dotô?), quem sabe um sorriso simpático. A avenida carioca também
tem seus arroubos de grandeza.
O Observatório de Favelas da Maré, ONG de uma
das maiores favelas da cidade, na margem direita da Brasil, sonhou e empreende a transformação de seus galpões
abandonados em espaços de arte. O deles, o BELA MARÉ, originado numa proposta
de exposição Bienal de artistas da região, já está em funcionamento, ao lado de
outros tantos que vêm sofrendo intervenções de retrofit e se transformando numa inusitada fonte de surpresas em
meio ao “purgatório da beleza e do caos”, como rapeia Fernanda Abreu.
O que se viu, enfim? Um retrato da diversidade dessa imensa avenida por onde desfilamos o
jeito de ser brasileiro. O tema do programa não foi coincidência. Entrávamos na
última semana da única avenida Brasil que não é real – mas a da novela.
E a avenida
Brasil – a conceitual, a do imaginário popular brasileiro – transformou-se em
quê? Numa “obra” que é a antítese do que aquele sonho de BELA (falo por mim)
significava. Tornou-se um esgoto de ideias, um valão de emoções torpes e
baratas, numa generalização horrorosa do que seja o Brasil, ou os brasileiros,
ou os bairros, as comunidades, de norte a sul.
Juntou-se, como
na BELA, um grupo de criadores – os “melhores da raça” – mas para usar de todo
o seu talento para escrever, vestir, teatralizar, ambientar e vender uma
coisa que nada tem de bela, de inspiradora de espíritos, de “cultural” ou mesmo
de mero entretenimento a que um cidadão queira se lançar após um dia de trabalho
estafante nas verdadeiras avenidas Brasil do país todo – com seu trânsito
feroz, sua arquitetura pavorosa, sua gestão caótica, seus saldos de mortos, sua
atmosfera podre.
Diariamente, por meses, como numa cuidadosa lavagem cerebral, digna do Big Brother de Orwell, quando passava por
ambientes variados, começando pela própria – pasmo – casa fraterna, indo por
consultórios e restaurantes no horário de exibição desta novela – “mais um campeão
de audiência” – o que eu sentia no ar? Susto, medo, raiva, revolta, esgares,
vozes alteradas, negatividade, baixo astral, provocação aos mais baixos instintos
humanos; uma verossimilhança vilã de cortiço... tão competente que não perde em nada para o pior de Hollywood: da Noiva de Chuck ao Desejo de Matar, do Exorcista "n" ao Massacre da Serra Elétrica.
A mim, suas cenas, seus diálogos, embrulhavam-me o estomago, assolavam-me de vergonha alheia, desagradavam-me
a alma e me afastavam como me afasto sempre da cornucópia de horas diárias de violência nos inúmeros canais de TV, tão “customizados” quanto uma caixa de bombons mofados.
O agravante é que este lixão humano foi ao ar na TV aberta, deseducando – sem
fronteira alguma – as crianças pelo país afora, empobrecendo as relações,
envenenando a juventude desprotegida (e não me venha com aquela lição de merval de que os 'pais mudam de canal', pois não há pais presentes nas malocas brasileiras, uma vez que estão sempre correndo atrás do sustento, até tarde da noite, todos os dias da semana) e mal-educada por professores
desprovidos culturalmente – pais tão desprotegidos quanto –, neste Brasil de mensalões. Alias, mensalão entre telenovelas dá um bom sanduíche triplo
somado à idem pobre comédia de preconceitos edulcorados das ‘empreguetes’,
versão infantil da novela das 9, que só faz reforçar o endurecimento espiritual do horário dito nobre.
E como diria aquela conhecida voz de além-túmulo: - Boa Noite!
Nesta avenida da telinha, que já vai tarde (até o “Vale a Pena Ver de Novo” de 2015, claro), está tudo aquilo que os idealizadores daquela BELA não desejavam mais ver como principal mensagem associada à avenida em torno da qual nasceram, brincaram, cresceram, criaram seus filhos e sonharam um dia ver mudada, bonita, viável, vivificável. Não só na telinha da TV, mas num belo dia a cada dois anos de suas, nossas, duras vidas. Plena de beleza, de fruição, de congraçamento, de poético e de sublime – sentimentos que esta telenovela fez questão de desconstruir, um a um, com tamanho padrão de qualidade e desservindo, como nunca antes, à alma deste país. Durma-se com um barulho desses...
Colaborou: Marcelo Ficher.
Nesta avenida da telinha, que já vai tarde (até o “Vale a Pena Ver de Novo” de 2015, claro), está tudo aquilo que os idealizadores daquela BELA não desejavam mais ver como principal mensagem associada à avenida em torno da qual nasceram, brincaram, cresceram, criaram seus filhos e sonharam um dia ver mudada, bonita, viável, vivificável. Não só na telinha da TV, mas num belo dia a cada dois anos de suas, nossas, duras vidas. Plena de beleza, de fruição, de congraçamento, de poético e de sublime – sentimentos que esta telenovela fez questão de desconstruir, um a um, com tamanho padrão de qualidade e desservindo, como nunca antes, à alma deste país. Durma-se com um barulho desses...
Colaborou: Marcelo Ficher.
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