sábado, 28 de fevereiro de 2009

"Suicídio alemão..."

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Confesso que andava à procura de um tema para escrever em fevereiro, e não deixar o mês sem uma matéria nova no blog. Pura demanda interna. Esta, aliás, é a mais antiga das motivações de alguém que escreve - a auto-imposição. Mas fica mais fácil quando se é visitado pela musa dos escribas: a inefável inspiração.

E ela veio. Na forma de uma matéria interessante publicada na edição de hoje, 28 de fevereiro, do jornal O Globo, em seu caderno Prosa & Verso. Trata de um fenômeno bem conhecido deste que vos escreve bem como de outros colegas da faina acadêmica: a forma tosca como as editoras recusam novos autores e novas obras, independente do fato de serem potenciais best sellers ou, pelo menos, autores de algo que valha a pena sair da gaveta. Conta o autor, o escritor canadense Camilien Roy (ver íntegra em www.marketing-e-cultura.com.br/clipping / matéria de 28/02/2009), como seriam algumas pérolas emitidas pelas editoras:

"Lemos o seu livro, mas não gostamos, então pode acrescentar esta carta à sua lista."

"Assim que o senhor terminar um novo trabalho, envie-nos, pois nossa equipe de leitura está trepidando de impaciência para ler outra de suas 'obras-primas'."

"Recusei seu original para seu próprio bem. Sim! Sim! Para seu próprio bem. Seu estilo denuncia sua juventude".

"Nossa comissão de leitura é aberta, é tolerante, mas... não há o que fazer: seu manuscrito não agradou, não gostaram dele... "

"Fiquei enojado com essa obra fedorenta e pavorosa que o senhor ousou qualificar de romance."

Longo caminho entre a pena e o prelo, entre a cena e o aplauso, entre a "demo" e o disco.

Isto remete-me a uma questão recorrente em sala de aula nos últimos quinze anos em que estivemos envolvidos com as questões que transpassam os campos da arte, da comunicação, da cultura e do marketing * - se temos e discutimos obras artísticas relevantes que experimentamos, isso deve-se à argúcia, sensibilidade, senso de oportunidade - ou até, sei lá! - uma questão de cara-ou-coroa que se deu, necessariamente, fora da obra de arte em si.

Explico melhor: o artista, seja ele um poeta, autor literário, ator ou roteirista, pintor ou dramaturgo, diretor de cena ou cineasta é alguém que cria por absoluta necessidade intrínseca. O músico, o escultor, o bailarino - o artista criador, em geral - faz sua arte fundamentalmente para si. Para sua satisfação pessoal. Por uma necessidade de comunicação em que ocupa invariavelmente o posto de emissor. E isso independente de haverem ou não "receptores". Seu "público" primordial é sua própria psiqué atendida no desejo de expressar-se. De dentro para fora. A partir de sua sensibilidade e leitura de mundo. Como disse Ezra Pound, "o artista é a antena da raça".

Muitos confundem o fazer artístico com necessidade de expansão de uma personalidade narcisista com endereço certo - o outro. Isto é parcialmente falso. É natural que analisemos - como público - a arte e suas manifestações a partir da performance das mesmas. Do aplauso - ou da vaia - da casa cheia ou do fracasso de público, da crítica favorável e transbordante ou do desprezo da mídia especializada. A alteridade é uma das questões que mais interessam àqueles que se dedicam a estudar o fenômeno da fruição das artes. Afinal, as obras de arte nos "falam" aos olhos, nos "tocam" o coração, "encantam" nossa mente.

Para Benjamin, com afeto.

Mas a arte autônoma - como definida por Walter Benjamin - , naquele very first moment do atelier, do estúdio caseiro, da escrivaninha de um Carlos Drummond de Andrade, provida de uma aura única, é obra privada que pode - ou não (e é disto que queremos tratar com mais ênfase) - ganhar o mundo, o público, a consagração ou o apupo da reprovação.

É sobre esta obscura e pouco conhecida fase que se dá entre o ponto final do romance ou do poema e sua publicação que repousa o mistério que atrevo-me a tentar trazer às claras, e que tem sido objeto de inúmeros colóquios, seminários e oficinas, tanto no espaço acadêmico quanto fora dele.

Como bem descreve Umberto Eco em seu fundamental "Obra aberta", a obra de arte encerra seu ciclo de vida quando fruída. Pouco ou nada valem o poema que morreu na gaveta, a sinfonia jamais gravada, o quadro encerrado no atelier para sempre. É preciso que o corpo de balé "aconteça" diante da plateia, que a ópera ganhe a estreia, os livros pelo menos a edição de lançamento e o roteiro o tão difícil financiamento para produção e distribuição.

É como a experiência por mim vivida a partir da doação do acervo de Manoel Maria de Vasconcellos à UERJ. No meio de toda aquela papelada havia dois originais: uma tese de livre docência que, apesar de aprovada com conceito "A", a PUC-Rio não editou e o manuscrito - inédito - de uma verdadeira teoria do comportamento do consumidor. Graças aos céus pude ser um elo na cadeia que levou esses textos da morte anunciada ao conhecimento público - ainda que singelo - pelas mãos da Conceito Editorial, a qual aceitou investir no incerto e dispendioso mercado editorial brasileiro. O primeiro livro, "Marketing Básico", lançado em 2006, teve sua edição esgotada - o que augura uma segunda para este ano. O outro, manuscrito em fase de editoração e revisão técnica, pré-intitulado pelo autor "Por que se compra", deve ganhar a luz em 2010. Vida longa aos - raros - empreendedores brasileiros da arte e da cultura!

Não me canso de citar também a recusa recorrente à minha proposta de levar disciplinas de produção às escolas de formação de artistas. Instituições como USP, UNICAMP, UNESP, UFRJ e UERJ esmeram-se em formar artistas mas nenhum perfil que se interesse em saber como o trabalho de atores ou músicos pode ser desenvolvido, não só como carreiras individuais mas também como proposta estética e produtiva de uma escola, institucionalmente. Vivi a experiência de ver a Orquestra de Música Brasileira (da qual tive a honra de co-participar em produção de espetáculos e gravação de disco) sucumbir sem qualquer apoio profissional ou profissionalizante da universidade que a viu nascer.

Outra história ou o senhor é o "famoso" quem?

Em São Paulo, ano 2000, por cortesia de um amigo jornalista e assessor de imprensa de importantes organizações, utilizei seu escritório contatando três dezenas de editoras a oferecer o manuscrito de minha tese de doutoramento desenvolvida na USP e versando, justamente, sobre marketing cultural. As respostas das editoras não poderiam ser mais iguais que as de uma secretária eletrônica onipresente: - o senhor é o famoso quem? Para em seguida emendar cortantes: - o senhor envia o seu original e nós temos seis meses para dizer se vamos ou não publicar. Nada mais burro, em minha opinião. Eles podiam estar diante de um mega seller! Piada. Mas hoje estou com o livro editado já há sete anos em uma casa editorial que prepara a terceira edição do livro proveniente da tese: "Marketing Cultural: das práticas à teoria".

Quantos livros maravilhosos deixaremos de ler porque sequer serão avaliados por uma editora? Quantos roteiros verdadeiramente originais (adaptados ou não de livros) jamais assistiremos na sala escura ou mesmo em vídeo porque sequer foram objeto de análise de algum estúdio? Quantas músicas de genuína qualidade deixaremos de ouvir porque nunca serão gravadas? E quantas peças jamais ganharão a cena? Lemos muito, ouvimos bastante música, vamos com frequência ao cinema, mas é inegável pensar que o que podemos fruir, mesmo em uma longa vida, é pequeníssima parcela do que o espírito humano já criou e ainda pode criar. Dessa angústia do não lido, do não visto, do não fruído, com alguma ironia, costumo dizer ser, este sim, caso que poderia dar "num verdadeiro suicídio alemão".

* O autor concebeu e coordena, na UERJ, os cursos "Marketing do Livro" (reciclagem em 30 horas), "Gestão e Marketing na Cultura" (aperfeiçoamento em 180 horas) e "Marketing Cultural: Teoria e Prática" (atualização em 75 horas), este último criado em 1994.
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