segunda-feira, 29 de junho de 2020

Marcas do Tempo.


Minha mãe caiu de novo. Tomou mais um tombo – o quarto – e machucou o rosto. Faz três semanas. Tomou quatro pontos e o corte já cicatrizou. Mas a queda deixou sua feição marcada. Seu olhar ficou um pouco mais perdido, embora sua alma esteja lá, intacta, olhando para mim.

Com o lixo da pandemia chinesa fiquei 10 semanas quase sem vê-la. Odeio o Partido Comunista Chinês por isso. Monstros. Quantos filhos não puderam ver suas mães caírem. Ou evitar seus tombos... Quantos filhos não puderam ver suas mães morrerem... E partirem sem nem velório. Monstros mais uma vez.

Mas já posso vê-la, com todos os cuidados, sim. Suspendemos o lockdown de mãe. Chega! Abracei-a ontem e vou fazê-lo de novo hoje, retomando uma rotina de plantões que nós, filhos, nos impusemos fazer depois de duas cirurgias que quase a levaram de vez em 2016.

Ela – que ficou 64 dias hospitalizada, sendo 47 numa U.T.I. – nos conta que viu o Pai. Não o seu ex-marido, mas o Pai Eterno. E Ele lhe disse que ainda não era sua hora. Que voltasse daquele portal. E ela voltou. Para nossa alegria. Reconhecendo-nos a todos e, apesar da memória abalada por 95 anos de vida, lembrando episódios da longa jornada.

Vejo fotos com ela, escuto música, jogo dominó, assisto-a fazendo caça-palavras que volta e meia compro para ela.   

Minha mãe nasceu em 1925, no dia 21 de maio – sob o signo de Gêmeos. Trabalhou fora, na Companhia Telefônica Brasileira (CTB), onde chegou ao cargo de supervisora de telefonistas. Namorou meu pai por dez anos. Ela, de Cascadura (RJ) – ele, de Caçapava (SP). Por isso digo que sou 'filho da Dutra'. Casados no Méier, foram para São Paulo.

Três anos depois, eu nascia na Maternidade São Paulo, à rua Frei Caneca. Morávamos na avenida Lavandisca, em Moema – de onde não tenho lembranças. Com um ano ou dois fomos, para a Vila Olímpia – rua Nova Cidade, 263 – e, depois, no 275. Lá passei a infância até os doze anos. Depois, fomos para a rua Gomes de Carvalho, 1095. Mais três anos muito felizes. Estudei na rua Fiandeiras (no Jardim de Infância ABC), na rua Casa do Ator (Gurilândia São Domingos Sávio) e na rua João Cachoeira (no Instituto Estadual de Educação Ministro Costa Manso – onde fiquei por oito anos).

E quem acompanhou tudo isso de perto, perto mesmo, ao lado de meu pai, Manoel Filho? Mamãe Stella. Revezavam-se na assinatura de meu Boletim escolar. E minha mãe todo ano me levava ao posto do MEC-FENAME  - na galeria Prestes Maia (no Anhangabaú) para comprar material escolar, e ao da CMTC para adquirir passes para os ônibus – das linhas 699 e 700 – que eu tomava na avenida Dr. Cardoso de Melo, saltando na rua Clodomiro Amazonas, na ida – e vice-versa, na volta.

Os últimos três anos de Paulicéia foram na rua Benjamin Constant, no Campo Belo. Ali, tirei a minha primeira carteira de trabalho e tive a minha primeira namorada – que se mudou para o Rio (e foi motivo de minha vinda também, um ano depois, em 20 de dezembro de 1976). A mãe dela, D. Maria, foi falar com a minha para ‘aconselhar’ que esquecêssemos aquele namoro... Meu salário (trabalhando como office-boy) só permitia uma viagem a cada cinco semanas... E no ombro de quem eu chorava muito, de saudades? No da minha mãe. Três anos depois, o namoro acabou, mas eu já tinha me tornado um 'cidadão carioca' – carioca como minha mãe – mesmo considerando-me muito mais um típico paulista, como meu pai. Bobagem – somos 50% DNA de um + 50% DNA do outro.

Depois, no Rio, fomos morar no Sítio ‘Nosso Cantinho’ (de meus tios Neusa e Nonito), na Rio-Petrópolis. Foi o único endereço em que nós, eu e meus três irmãos, ‘aceitamos’ morar – o da casa onde passávamos as férias todos os anos, em julho e janeiro. Minha mãe enfrentou tudo sozinha naquele ano, pois meu pai ficou morando em São Paulo para ir fechando a firma que administrava – uma distribuidora de alimentos macrobióticos. Meus dois irmãos estudaram numa escola rural. Minha irmã foi morar com a tia Glória – sua 'segunda mãe' – em Jacarepaguá.

Depois disso tudo, Ilha do Governador. Rua Haroldo Lobo, rua Rui Vaz Pinto, rua Gaspar Magalhães – endereço que foi o derradeiro para meu pai, em 1985. Anos sempre muito felizes. Lembro os lanches da tarde – café-com-leite e pão-com-manteiga. Adoro lanchar com minha mãe até hoje. É um ritual. Depois, às 18 horas, sempre que possível, sintonizamos a Ave Maria e rezamos juntos.

Que sorte a minha! Já vou indo... me aprontar para visitá-la.

Rio de Janeiro, 29 de junho – dia de São Pedro – de 2020.

Manoel Neto.
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